sexta-feira, 10 de maio de 2024

Um Pedacinho do RS mora em mim


Simplesmente estupefata a situação, a tragédia que assola o Rio Grande do Sul. Não   tem como não se emocionar, se revoltar, se deixar tocar de alguma forma. O corpo   todo sente. O coração sente. A alma sente. Choramos e oramos. Oramos.

Um pedacinho do RS mora dentro de mim, desde pequena. A primeira vez que viajei   para lá, foi com meu pai e meu tio Nicky, em 1969. Fomos resolver alguma coisa do   passaporte de meu tio, no Consulado de Porto Alegre. E ficamos hospedados em São  Leopoldo, na casa do tio Otte, marido de minha tia-avó Joana. Mais precisamente na   Vila Sharlau. Os tios Otte e Arno tinham a Fábrica da Artefatos de Chifre "Probst",   onde eram produzidos diversos tipos de pentes, calçadeiras de sapato, abridores de carta, colheres e garfos para sobremesas e saladas, além de outros. 

Meu pai foi motorista durante todo o trajeto, em sua 'Fubica'. Não sei quanto tempo levamos, mas devemos ter viajado o dia todo. Saímos de Blumenau, passamos a serra da Subida até Rio do Sul, Lages, Vacaria e então São Leopoldo. A Fubica era um carrinho velho, mas foi valente, aguentou o tranco!

Naqueles dias, tia Joana serviu um bolo feito por ela. Era simplesmente delicioso, tanto que pedi a receita e o fiz várias vezes, em casa, anos depois. Chamei de 'torta gaúcha', pois a tia não me passou um nome. E como aprendi lá e tinha um sabor nunca antes experimentado, foi assim que a nomeei. E é assim que consta no meu caderno de receitas. O hábito do chimarrão veio com meu pai. Não diariamente, como é o hábito do gaúcho, mas de vez em quando meu pai preparava uma cuia em casa.

Dói muito ver tudo isso, hoje, debaixo da água dessa enchente.


 Em julho de1975 voltei ao RS, desta vez com meus pais. Meu irmão não foi, não lembro mais porque. Fomos de ônibus: saímos à noite da Rodoviária de Blumenau e viajamos durante e noite toda. Eu não conseguia pregar o olho, curiosa que estava pelo trajeto. Passar na serra, antes de Caxias, me deixou simplesmente fascinada: enquanto se passava por um lado da serra, viam-se as luzes dos carros e caminhões passando do outro lado. Era a primeira vez que eu passava por ali à noite e isto me deixou encantada. As luzes dos veículos seguindo pelas estradas pareciam mágica.

Passamos dias divertidos em companhia dos tios e primos Victor, Vilson e Miriam. Passeamos pelo centro de São Leopoldo, conhecemos o aeroclube e também visitamos um Clube que tinha piscina. Visitamos algumas fábricas e numa delas, de confecção de malas e bolsas, comprei uma frasqueira com fecho e chave. Uso até hoje. Minha mãe comprou algumas peças de roupas da esposa do tio Arno e que ela tinha trazido da Argentina. Ela era tipo 'sacoleira'. 

São Leopoldo

Miriam era muito querida e, como estávamos naquela fase louca da adolescência, criamos para nós um código secreto de letras e símbolos. Código esse usado em nossas cartas, para que ninguém descobrisse o que estávamos conversando. Trocamos algumas cartas com este código! E nos verões, a turma vinha veranear em Balneário Camboriú, na casa que a tia Agathe alugava e então podíamos nos encontrar de novo. Ou tia Joana vinha visitar a sobrinha Ruth, em Joinville. Aproveitava e ficava uns dois meses, visitando as irmãs, entre elas minha vó Emília. E íamos então para a casa de praia na Penha, onde tia Joana passava as tardes nos contando histórias e ajeitando chimarrão, um pouco doce e não tão quente, preferência das mulheres e crianças. As histórias eram sempre de cunho romântico, o que nos entretia deveras. Dizia serem reais. Talvez fossem mesmo!


Gramado-Casa da Juventude


 Em dezembro de 1977 e 1979 voltei ao RS para participar do "Raio de Sol - Acampamento de Jovens Cientistas Cristãos", na cidade de Gramado. Cada evento acontecia durante o período de uma semana: até o Reveillon, até o dia primeiro de janeiro. Era um encontro latino-americano e muitos jovens vieram do Chile, Argentina, Perú, Uruguai e de todos os cantos do Brasil. Nestes eventos fiz muitos amigos, muitos dos quais perduram até hoje. Alguns vieram à Blumenau me visitar e também eu viajei e visitei alguns deles. Lembro de Sílvia, Beatriz (gaúcha), Oscar, Pedro, Alfredo (gaúcho), Mário, Jacira, Tânia, Edésio, Vitória, Marisia, e de muitos dos instrutores. Nestes dias passeamos pelo centro e arredores de Gramado e Canela. Jogamos tênis num dos clubes, jogamos tênis de mesa na Casa da Juventude, onde aconteceu o Evento. Encenamos peças de teatro, fizemos artesanato e lemos e estudamos muito.

Muitos destes amigos moram em cidades que estão assoladas pelas enchentes. Dói muito ver tudo isso debaixo da água desta enchente.

Em 1976 entre na Engenharia-FURB, Blumenau. Uma das colegas de faculdade era a Gisa, casada com Mário, ambos de Pelotas/RS. Em 1979 comecei a namorar com um colega de Mário, também gaúcho, o Túlio: ambos faziam a faculdade de Direito. Em 1981, quando casamos, Gisa e Mário foram padrinhos e anos depois fomos padrinhos da caçula Caroline. De Blumenau eles mudaram para Florianópolis e nós, um ou dois anos depois, também nos mudamos para Florianópolis. Nossa amizade ultrapassou as cheias de Blumenau, a ponte Hercílio Luz, viagens pelo interior de Santa Catarina com a filharada toda, visita a amigos e parentes no RS, churrascos, jantares, aniversários, encontros e desencontros, tipo nossos divórcios. Nossa amizade perdurou por todos estes anos e, embora desenlaces matrimonias e a perda prematura de Mário tenham acontecido, a amizade não esmoreceu. 

Ado e Janete, amigos de longa data de Túlio, gaúchos, também foram padrinhos de casamento. Muitas foram as visitas daqui pra lá e de lá pra cá. As 'rejantas' de Ado são inesquecíveis! A filha Caroline é afilhada. Moraram em Florianópolis, no Rio e decididamente voltaram para Canoas. Continuamos em contato até hoje. O chimarrão? Sempre de mão em mão...

Em 2009 fizemos uma viagem por todo RS: saímos de Canoas, passamos por Porto Alegre, São Lourenço do Sul, Pelotas, Bagé, Uruguaiana, São Borja, Itaqui, São Nicolau, Passo Fundo, Serafina 
Correia, Guaporé, Veranópolis, Vale dos Vinhedos, Bento Gonçalves e de volta a Canoas. 


Pelotas: o rio que hoje inunda a cidade

E dói sim, ver Pelotas, Canoas e todas as outras cidades arredores debaixo da água...

Conheci meus sogros em dezembro de 1980. Moravam num sítio, no interior de Vacaria. A família era composta de 13 filhos, além de cunhados, cunhadas e sobrinhos, muitos sobrinhos. Cunhado Romeu e cunhada Elizabeth já partiram deste plano. Fica o sentimento de gratidão às cunhadas e cunhados, em especial Marilene, Carla, Juliana e Rose, sempre presentes. Muitos deles mantem contato com o Vinícius, pelo whats-app e isso é muito legal! Gean e Artur também são afilhados e fomos padrinhos de casamento de muitos deles. Estão espalhados pelas cidades do RS, e há quem more em Porto Alegre, hoje tomada pela enchente.

Isso dói sim, ver tudo debaixo d'água.

Charqueada São João

Mudamos para Florianópolis, vivemos num apartamento cujos vizinhos João e Angélica são gaúchos. Trabalhamos em empresas cujos amigos são gaúchos. Fizemos um curso de danças gaúchas e o círculo de amizades aumentou. Criou-se um grupo de arte e cultura, em Florianópolis, logo depois do curso de danças. Vinícius, Heloisa e Taiane participaram do Grupo de Arte e Cultura Ilha Xucra, declamando e dançando nas invernadas. Participaram de muitos Rodeios e foram premiadas em muitos deles. Não foram poucos os eventos e acampamentos em Rodeios. Vinícius é torcedor do Grêmio, que nem o pai. As meninas também torcem, mas o Vinícius é mais fanático.

Todos temos sentimentos pela terra Riograndense.


E então entrei para o Curso de Letras - alemão, na UFSC. Foram anos de muito estudo, pesquisas, graduação e, finalmente, o Mestrado. Novos conhecimentos, novas amizades: muitas de raízes gaúchas, como é o caso de Mônica e Luciane. Dirlei está com um pé nesse gauchismo, pois se criou em uma cidade com hábitos típicos gaúchos. Criamos um grupo, um 'Stammtisch' que sobrevive já há 25 anos. Bodas de Prata! Um de nossos amigos mora na Alemanha e cada vez que vem, temos um forte motivo de nos reencontrarmos. Ano passado, quando Felipe veio, viajamos para Novo Hamburgo, Porto Alegre e Serra Gaúcha.  

E ainda no ano passado, por desejo das filhas, fizemos uma viagem em família ao RS: São Chico, Gramado, Canela, Igrejinha, Taquara... foram dias tão bonitos, em lugares tão bonitos do nosso estado Rio Grande do Sul. 

Mas dói, dói muito ver tudo isso, hoje, debaixo da água dessa enchente.



Nasci em Blumenau, cresci e estudei em Blumenau. Mudei para Florianópolis após o nascimento do Vinícius. Sempre convivi com a enchente, em Blumenau, um fenômeno 'natural' naquela bacia hidrográfica do Itajaí-Açú. Mas sempre em volumes menores. Nada que se compare ao que está acontecendo no RS, nem ao que aconteceu em Blumenau, em 1983 e 1984. Nada se compara ao que já foi vivido. Não posso dizer, de jeito nenhum, que sei o que o povo gaúcho está sofrendo, passando. Porque não tem parâmetro. Talvez o parâmetro seja mesmo uma "guerra", como muitos enfatizam.

Sei sim, do que vive em mim. Do pedaço que mora no meu coração. Da minha simpatia pelo RS, pelo povo, por tudo que tem construído tão maravilhosamente, por todos os cantos e recantos tão únicos. Sei do amor e do sentimento amigo que carrego no coração por cada conhecido, cada amigo. Foram muitas as cartas trocadas. Foram muitos os telefonemas e mensagens via celular. Amizades que aqueceram meu coração em muitos momentos de alegrias e outros difíceis. Gratidão enorme a todos. Força RS. Queira o Patrão lá de Cima, que tudo passe logo e fique melhor, muito melhor. 

Porque dói, dói muito saber do sofrimento de todo esse povo.










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