sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

O mundo limpo da Rua São Paulo (Helge Pantzier)

Estamos vivendo os últimos dias dos "200 anos de Imigração Alemã no Brasil" e, em homenagem, pra nunca mais esquecer, vou contar pra vocês um pedacinho, uma história rememorada pelo autor Helge, em seu livro "Uma viagem para nunca mais voltar", cujo título é 'o mundo limpo da rua São Paulo'.

Recebi o livro das mãos de sua esposa, viúva, Marina. Helge escreveu, editou e publicou o livro, mas partiu para outra dimensão dias antes de autografá-lo.

O livro é uma gostosura de leitura! Tem momentos bem introspectivos, de fortes emoções. E outros muito divertidos, em que a gente se pega rindo sozinho! Ou mesmo lembrando, do tempo da Oma e do Opa, de como era a vida em certos lugares de Blumenau.

    Eu deveria ter uns sete anos. Pelo nosso jardim na Rua São Paulo no 70 e defront2e da Sodema, esta parte já possuía canalização, passava um pequeno riacho de águas totalmente transparentes e límpidas. A água vinha de um morro próximo e depois de passar por uma floresta, margeava uma rua dos fundos, mas continuava limpa, pois deste lado da rua não havia casas. Com um amiguinho, eu fiz repetidas vezes uma minúscula represa para que se formasse um laguinho. Quando vinha uma trovoada a água crescia muito e a represa sumia.

    Assim que as águas baixavam, construíamos novamente a represa, principalmente no verão.

    Tínhamos galinhas, patos, marrecos e, geralmente, um porco, além de gatos e cachorros. Eu cresci no meio desses bichos e aprendi a gostar deles.



    Minha avó, sabendo que as galinhas eram mais cuidadosas com seus filhotes do que as patas, fazia com que as galinhas chocassem os ovos das patas. Apesar de o choco dos ovos destas demorarem quatro semanas e não três, como o das galinhas, estas se desincumbiam airosamente de sua missão.

    Cuidavam para não pisarem os patinhos e os criavam com todo cuidado.

    Como já tínhamos assistido à cena antes, já esperávamos que a galinha desse seu primeiro passeio em direção à nossa pequena represa.

    Se fossem pintos, ela os orientaria para que jamais entrassem na água, pois seria a morte certa.

    Nesse caso, a mamãe galinha vinha conduzindo os seus filhotes patinhos com todo o cuidado até perto do riacho, para também orientá-los nesse sentido. De repente, os patinhos correram desabaladamente em direção à nossa represa e se jogaram na água. A mamãe galinha, que de forma nenhuma podia entrar na água, pois corria o risco de morrer afogada, ficava desesperada com seus degenerados filhotes. Cacarejava, fazia cruc, cruc, cruc para ver se chamava a atenção dos patinhos para saírem da água. No seu desespero soltava sons que eu nunca havia ouvido uma galinha soltar. Entretanto, os patinhos nem bola davam. O estresse da mãe postiça era total. Esta cena se repetia durante perto de duas semanas. Em determinado momento, a galinha não aguentava mais e simplesmente dava meia volta e ia ciscar noutra freguesia. Ela tinha aprendido que seus filhos estrnhos, depois de muito se banharem, voltariam das águas e pediriam abrigo sob suas penas.

    Neste mesmo riacho, de vez em quando, apareciam enguias. Eu saía correndo e avisava um adulto 

 capaz de pegá-las. Isto sempre dava uma boa refeição, bem diferente das demais. Da mesma forma havia piavas, alguns peixinhos maiores e de tempos em tempos um pitu perdido, o camarão de água doce. ninguém pegava os peixes, pois eram muito pequenos. Eu costumava jogar pedacinhos de pão na água para ver como, principalmente, os peixinhos os pegavam. A água era totalmente transparente. O capim crescia nas margens e minha avó colhia até agrião. Este riacho me ensinou muitas coisas sobre a vida dos bichos.

    Eu observava as formigas, os grilos, as libélulas, as minhocas, as aranhas com as suas teias e tudo o que se mexia. Como a água corria lentamente no meio das pedras, arbustos, bananeiras e por um tronco caído, havia um universo a ser observado.

    Então construíram as casas dos operários da fábrica de chapéus Nelsa à margem do riacho e mais uma série de outras casas sem fossa em uma rua que ficava aos fundos. Aos dez anos resolvi construir uma represa maior e senti que as mãos, depois de mergulhadas na água, ficavam ásperas. Os peixinhos haviam desaparecido, a água ficou turva, as enguias nunca mais voltaram e os pitus nem se fala. Esse mundo limpo e mesmo ingênuo havia desaparecido para sempre de nossas vidas.


Sobre o autor: Helge Detlev Pantzier, nasceu no Brasil tendo convivido com uma das fases mais turbulentas do país. Dela resultaram grandes mudanças. Foi Auditor Fiscal e Procurador Geral da Fazenda de SC, professor em diversas universidades, como a UDESC, UFSC, UNISUL e ESTÁCIO DE SÁ. (...) Deciciu redigir sua biografia sobre um assunto muito pouco abordado pela literatura brasileira e que merece ser contada enquanto ainda é tempo, por quem presenciou os acontecimentos.
















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